quarta-feira, 4 de abril de 2018

DAS RAÍZES, A MEMÓRIA DA VIDA SIMPLES (Profª Schirley)

           É de emocionar o legado que nossos bisavós, avós e pais, aqui do Sul do Brasil, principalmente,  nos deixaram durante a trajetória  das suas vidas.  Na época,  a maior luta era por construir a vida de forma mais  independente e feliz.  Tudo era questão de vivência.  De um olhar para amenizar o sofrimento.  De uma ação inventada para se obter uma morada.  Para obter uma vida mais provida.
                Esses momentos de saudades das nossas raízes, de nossas memórias nos fazem lembrar de muitas e muitas invenções criativas, cheias de doçuras e encantos e também de perplexidades.  Quem de nós, filhos de imigrantes italianos, hoje, com quarenta ou cinquenta anos de idade ou até mais, não lembra:  do forno de barro  em brasa, assando os pães e cucas, com a missão de exalar aromas inebriantes e convidar a família para o banquete?  E o fogão também feito de um caixote, revestido de barro, com uma chapa de ferro para  aquecer a água e fazer a polenta?  Quem não lembra do chuveiro feito de lata pelo primo ou tio, engenheiro nato , oferecendo mais conforto e banho para os corpos e mentes se banharem em profusão, em criação?  Até Santos Dummond possuía, em sua casinha, em Petrópolis, um chuveiro desses que chovia  ideias mirabolantes e fizeram voar às alturas, abraçando novos mundos!  Quem não lembra  do nono, chegando da colônia,  aos sábados, com a carroça grávida de melancias vermelhas e amarelas (estas raras)  e escolhidas para a mama e a nona?  Quem não lembra das áreas e das paredes das casas  com latas de óleo e conserva, vestidas de folhagens e flores de mil cores ?
               Todas essas memórias povoam a mente de muita gente.  Se enrolam na colcha de retalhos que agasalha o coração de muita gente simples e sensível. 
             O que me fez lembrar de tudo isso, citado acima, foi o  coração sensível e saudoso  da escritora Eloí Elisabete Bocheco, poetizando  uma “escrevivência” memorialista. Essa bordada de ternura, delicadeza, beleza,  simplicidade... Saudades e verdades: “JARDINS  SUSPENSOS”. 


JARDINS SUSPENSOS (ELOÍ ELISABETE BOCHECO)
Em muitos lugares do interior do Brasil havia o costume de reutilizar latas de óleo ou conserva para plantar folhagens. Os “vasos” de latas eram pendurados pela boca nas varandas ou nas paredes externas da residência, à beira das portas de entrada.
Era raro encontrar uma casa que não tivesse o seu jardinzinho suspenso. Uma vizinha trocava sementes ou mudas com outra de modo que nenhuma casa ficava sem a sua latinha de onze-horas, rosa-de-todo-ano, begônia, mimo-do-céu, brinco-de-princesa, flor-de-maio, manjericão, dentre outras espécies. 
Minha vó percorreu, a pé, quinze quilômetros, de ida, e mais outros quinze de volta, até uma casa na beira do rio Pelotas para buscar uma muda da flor-de-maio. Plantou-a em terra da mata virgem e regava-a com água da fonte. Em dias de geada fazia a planta dormir na sala e, pela manhã, devolvia-a à parede. Tal desvelo não foi em vão; a planta pegou viço, expandiu a ramagem de tal modo que ocultou a lata, e, na floração, exagerava na beleza de suas flores cor-de-rosa.
A flor-de-maio era uma espécie de rainha do jardim suspenso, seguida de perto pelo brinco-de-princesa, cuja floração era também esplêndida. O manjericão fazia parte da realeza por seu perfume inspirador e por atrair bons presságios para a moradia.
As visitas, ao saírem, levavam uma folha de manjericão atrás das orelhas. Algumas esmagavam as folhas entre os dedos para melhor aproveitar o aroma energizante. De ser depenado acho que o manjericão não gostava; não dava conta de botar folhas novas para as gentes arrancarem.
Das latas, em segundo uso, brotavam os jardinzinhos aéreos nas casas sem pintura das gentes simples do campo. Reaproveitadas, as latas davam um salto de qualidade em suas vidas de objetos utilitários. Ser lata de óleo é uma coisa muito diversa de ser “vaso” de flor. No primeiro caso serviam ao sustento do corpo, no segundo ao provimento lúdico do espírito. 
Era poético o ritual de “profanação” das latas. Invertendo-se o uso, transformavam-se em coadjuvantes de uma visão mágica, um ponto luminoso na rotina: ao entrar e sair de casa as gentes topavam com os ramos e as flores se derramando pela parede.
Esse exercício de “profanação” das latas era muito parecido com os outros destinos que, nas brincadeiras, as crianças davam às coisas: a abóbora pequena era boneca, telha virava armário, xícara sem asa era a casa de um bruxo, caixa de sapato era berço, tijolo era poltrona, litro era príncipe ou soldado, conforme a conveniência, e mil outros batizados poéticos que uma criança do campo, naquela época, inventava, e que qualquer criança, em qualquer época e lugar, inventa se puder viver a infância.
Aquelas pessoas nunca deixavam de ser crianças. O mais velho deles, muitas vezes era o mais pronto para as brincadeiras. O jardim suspenso fazia parte das estratégias para enganar a rotina pesada; uma ponta lúdica a mais, dentre outras, que eles puxavam para alimentar o gosto de viver. 
No final da tarde, era à beira da porta de entrada, assistidos pelas folhagens, que sentavam para estarem juntos em conversas e risadas, embora, às vezes, pelo cansaço ou por força de alguma tragédia, ficassem em silêncio.
Da despensa para a varanda e para a porta de entrada - era um belo futuro para as latas, num tempo em que as palavras reciclar, reduzir e reutilizar não tinham ainda ganhado as ruas do mundo.



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